Acordo pela manhã sentindo falta do meu café, aquele que eu acostumava tomar em alguns dias nas cafeterias do meu bairro. Foi uma das coisas que mais me identifiquei na cultura espanhola: o hábito de ‘desayunar’ nas cafeterias e saborear as ‘meriendas’ no final da tarde. Ali ficavam todos, numa linda mistura de momentos compartilhados: crianças, famílias, amigos e idosos empurrando seus andadores, alegres, sentados, regados a muita conversa.
Mas hoje eu estava só, na minha pequena comunidade chamada família, enfrentando este desafio que o Universo nos trouxe. No 15º dia da Quarentena, abro a porta do meu quarto que dá para uma pequena sacada e, diferente das vozes que ouvia das ruas, recebo o vento tocando o meu rosto em um dia fresco, ouço as pausas entre o silêncio e o canto dos pássaros que não ouvia a tempo devido ao ruído dos carros, respiro profundamente um ar puro e digo em voz alta:
– Hoje vou tomar meu café na sacada!
Meu filho, que me ouve, encara como brincadeira e sai arrumando o cenário como se fosse o garçom e, já sentados, observamos as ruas vazias. Meus pensamentos seguem voando enquanto desfruto do cheiro do meu cappuccino quando, repentinamente, minhas sensações são interrompidas e meus pensamentos me jogam, imersa, nas tensões das minhas responsabilidades. Sorrateiramente puxam os fios das coisas que eu tenho que fazer neste dia, então, paro um momento e me obrigo a freá-los quando me dou conta da palavra produzir. Lembro-me do livro ‘Vida líquida’, de Bauman, e reflito:
como é difícil não pensar em produzir quando, em nossa sociedade, “se eu não produzo, eu não existo”.
Recordei minha dinâmica na primeira semana da quarentena, a energia que chegava intensamente por ter aquele tempo tão esperado, apesar da minha rotina incluir trabalhar desde casa. Coloquei a faxina em dia, dos armários saquei aquelas roupas que nunca usei, mas que poderia ser útil para alguém, separei os livros que gostaria de ler, coloquei na agenda as coisas que gostaria de fazer e até arrisquei me comprometer em atividades físicas regularmente. Nossa… chegar nesse ponto me deu uma sensação de alívio; vou conseguir produzir nesses primeiros dias de quarentena e quem sabe começar aquele curso tão desejado.
Depois do sétimo dia, a realidade veio bater à minha porta; as ativações do setor de Emergência (Equipe de Resposta Imediata de Emergência Psicossocial), no qual sou voluntária como psicóloga na Cruz Vermelha espanhola, começaram a aparecer. Então coloquei minha programação de lado para pegar o telefone e ouvir os medos e receios das famílias que já tinham sido afetadas pelo coronavírus. Famílias que não podem acompanhar os internados, que têm notícias somente uma vez ao dia através da equipe do hospital e nenhum contato quando esse paciente sai da internação e vai para a UTI porque necessita de um respirador; famílias que também não podem sair para ir ao mercado ou levar o cachorro passear porque estão em quarentena, provavelmente também infectadas.
A cada intervenção que eu acompanhava ou ouvia através dos relatos dos outros voluntários da equipe de emergência, eu ia olhando para os meus medos, inseguranças e receios diante do cenário de um país com mais de 73 mil diagnósticos confirmados, mais de 5.900 mortes e em média 12 mil curados. Pacos, Pepes, Antonios, Marias, Almudenas e tantas outras pessoas que compunham aquele cenário lindo das cafeterias, com suas risadas, broncas e interações, atuando como avós, pais, tios, com suas crianças, famílias e amigos… esse cenário estava em risco. Não eram somente números; são histórias, como a minha e a sua. Nossos idosos estavam morrendo e alguns adultos já não chegariam a desfrutar de sua velhice.
Como na minha cidade a equipe de voluntários é grande e todos já estavam em dia com seus cursos preparatórios para essa emergência, a minha demanda não era e nem está sendo intensa. Está muito bem distribuída entre atender os afetados pela infecção, como também linhas disponíveis para uma escuta ativa destinada à população e profissionais sanitários. Não estou sobrecarregada e arriscaria dizer que meu tempo está sobrando, mas não para produzir mais, meu tempo agora foi ‘ressignificado’.
Reflito naquela conjuntura de pensamentos racionalizados que lançou Descartes resumidamente na frase “Penso, logo existo”, que comigo passou da racionalização, quando montei minha listinha de tarefas para os primeiros 15 dias da quarentena, para um significado mais intenso: “Sinto, logo existo”. Sem a pretensão de comparação, entre mim e o grande filósofo, essa reflexão sobre o sentir me permitiu olhar mais atentamente para o cenário do mundo. Enquanto profissional da saúde lembrei-me dos índices de depressão, transtornos mentais e suicídios no mundo. Enfermidades que podem estar relacionadas por um incrível distanciamento entre a desvalorização do sentir e da sua filha, a sensibilidade, por uma supervalorização da razão e mais ainda massacrada por uma demanda intensa de produtividade.
E eu, que sempre apostei como linha de trabalho psicoterapêutico o contato das emoções e sentimentos, estava me reconectando com a essência que me move no meu trabalho e dando um novo significado para esse caos: tempo de sentir. Mas não, não é sentir como fiz intensamente e individualmente quando sofri da ‘Síndrome de Ulisses’ nos dois primeiros anos, por ter me aventurado como emigrante em um novo país. É tempo de sentir o ‘Outro’!
Depois de racionalizar, planejar e organizar minha quarentena e da minha família, hoje me encontro no tempo de sentir… o ‘outro’, e olha que eu arrogantemente achava que vivia isso intensamente. Mas percebi que mergulhar intensamente na situação em que o caos nos coloca é enxergar que não há linha de chegada nem meritocracia que vá fazer alguém chegar vivo no topo dessa luta sem muita dor pelos milhares que ficaram para trás. E que aquela tristeza, que há tempo negávamos sentir, vai ficar por um tempo como nossa mestra para o exercício da nossa humanidade.
Que todo o mundo dói, literalmente. Dói de medo, de fome e de pavor.
Sentir o outro me faz refletir que se eu encher três carrinhos de supermercado com medo da escassez e comprar 15 potes de álcool gel e não sobrar álcool para o mocinho que vai carregar minhas compras, não adiantou nada. Estamos todos afetivamente, pelo amor ou pela dor, interligados. Que talvez pensar na dor do outro e senti-la desabrocha a minha capacidade e sensibilidade de distribuir álcool gel ou sabonete, ou alimento para aquela família do meu bairro que não tem como gastar com isso. Sem pena, porque a pena pode ser uma armadilha que guarda meu complexo de superioridade, e sem culpa, pois não sou vítima do caos, sou corresponsável atuante para ajudar a resolvê-lo sem me pautar em ideologias, mas em atitudes.
Quando nos sentimos responsáveis só há duas formas de se comportar emocionalmente de maneira saudável: decidindo e agindo. Toda decisão trará perdas – quem não quer perder nada é o imaturo e egocêntrico. A questão é que quando faço escolhas baseadas no sentir o ‘outro’, as minhas decisões abrangem um comprometimento social e uma maior humanidade. O meu comprometimento social pode não me permitir ficar em casa porque tenho que pagar minhas contas, ou porque faço parte dos trabalhadores dos setores de emergência. Mas e se eu unir forças com os outros que estejam ou não na mesma situação em que me encontro? Que desejam assumir a responsabilidade de cuidar da nossa comunidade? Com os recursos que temos? Será que não me sentiria fortalecida para exigir, do estado e dos líderes, soluções conjuntas que façam todos se sentirem mais seguros? E tudo bem se eu tiver que sair para a rua para trabalhar, porque sei que estou fazendo o meu melhor, e aqueles que ficam em casa também. Na conexão com o ‘outro’ posso cuidar de mim e dos meus com mais atenção e responsabilidade, sentindo o cuidado das vidas que amo e dos que são amados por alguém.
E quanto aos que não tem um ‘alguém’, quiçá possamos mostrar que existe uma comunidade unida também por ele, para que muitas histórias sobrevivam ao caos. Sim, temos como prioridade o trabalho, mas eu trabalho por quem? Para quê? Se esse ‘quê’ ou ‘quem’ deixar de existir, cai por terra o significado dos tempos que me dediquei ao trabalho. E esse foi um dos outros aprendizados que obtive com os idosos espanhóis.
Sim, eu sei, muita gente trabalha simplesmente para matar a fome, infelizmente, em nosso país. Essa constatação me faz recordar uma frase postada nas redes sociais nesses dias por um dos grandes violeiros do nosso lindo país, Paulo Freire: “É o Amor, e não a Vida, o contrário da Morte”. Frase de seu pai, Roberto Freire. E sinto que talvez um dos sentidos do caos ou dos tempos de sentir o outro é considerar o Amor como prática comunitária obrigatória e sentir realmente que toda a Vida vale Amor, independentemente do que ela produz.
Nesses devaneios, um dos meus ‘porquês’ ou ‘por quem’ tocou levemente meu braço perguntando:
– Mãe, posso levar sua xícara?
Então, eu olhei em seus pequenos olhos da cor de jabuticaba e o abracei demoradamente, sentindo-me privilegiada por ainda estar em sua história.
Gizele Cordeiro – Psicóloga por paixão e uma eterna colecionadora de sentidos.
Texto criado para o Jornal A Comarca da cidade de Matão – SP.
67 comentários em “Os Sentidos de uma Brasileira na Espanha”
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