As mochilas já não paravam nas costas, volta e meia, buscávamos um canto para encosta-las, entre as andanças das ruas de Montmartre , Paris.
Montmartre é um bairro boêmio de Paris, em 1860 o bairro tornou-se um ponto de encontro importante de artistas e intelectuais, famosos pela sua animada vida noturna. Ponto de encontro de figuras como Degas, Cézanne, Monet, Van Gogh, Renoir e Toulouse-Lautrec frequentavam o lugar, contribuindo para criar um clima libertário.
Hoje o bairro ainda vibra e cheira arte, é só você fugir um pouco dos destinos turísticos e caros, como Moulin Rouge, e sair da rota do lucro das agências turísticas.
Se você deseja buscar a alma dos lugares, assim como na Vida, é só fazer o que a maioria não faz.
Uma colina que ainda é animada por artistas, turistas e boêmios que sabem os locais específicos da verdadeira diversão, gente acolhedora como os franceses e que adoram partilhar e conversar com turistas, ainda não encontrei. Do garçom ao vendedor ambulante, você descobre rapidinho quais os lugares onde pulsa Vida.
Chegamos ao hostel antes do combinado e ficamos curtindo a recepção, que já cheirava arte. Apesar do cansaço, valeu a pena à espera por um quarto suíte com aquela ducha revigorante, nos preparando para mais andanças…
Sempre preferimos hostel, conhecemos pessoas do Mundo todo, a maioria abertas para partilhas e trocas de experiências. De uma linguagem corporal ou com ajuda do tradutor, as risadas, conversas e trocas sempre acontecem…
De pessoas sozinhas à famílias, a intervenção é certa, principalmente no horários das refeições.
Santas refeições!
Cozinhar em hostel é umas das experiências mais deliciosas de troca que vivenciamos em nossas viagens.
E é uma dessas experiências que vim partilhar aqui com vocês.
Eu e meu marido decidimos fazer àquele jantarzinho romântico, à três, com um bom vinho, uma boa pasta, molho inusitado e aproveitando os queijos maravilhosos da França, em nossa primeira noite em Paris.
Sempre tivemos o hábito de ficar conversando, bebendo vinho enquanto preparamos a refeição da família.
Nesse dia, a cozinha do hostel estava vazia, fiquei em uma mesa de frente pra ele, dividindo atenção entre ele e o pequeno que interagia conosco na preparação da ceia.
Em certo momento, quando meu marido já estava com os ingredientes preparados ao lado da pia, panela no fogo, degustando o vinho, e pegando o escorredor para pasta, ouvimos um barulho de sino, um tipo de alarme…
Logo chegou o recepcionista e foi entrando na cozinha.
Uma rapaz que devia ter seus 30 anos, barba grande, sorridente, atencioso e que ainda não tínhamos conversado. Pediu licença e falou algo que não entendemos…
Corporalmente ele foi empurrando um pouco os ingredientes longe da torneira, tirou o escorredor de perto da cuba com um pouco de pressa, como se estivesse atrasado e foi tomando espaço na frente da pia com seu corpo grande e musculoso.
Começou a lavar as mãos, meu marido sacou o escorredor de lado, e ainda conversando comigo e um pouco de olho no rapaz, esperava-o terminar. Quando de repente, olhamos em direção à pia, já não eram só as mãos que estavam sendo higienizadas.
Nos entreolhamos sem entender muito bem o que se passava, e continuamos olhando culturalmente perplexos nos pés do rapaz, que estavam sendo banhados dentro da pia da cozinha.
E antes que você expresse qualquer reação, meu primeiro pensamento foi, mas cadê o bendito banheiro da recepção?
Mas a única coisa que corporalmente conseguimos expressar, foram risadas sucintas e olhos de cumplicidade que brilhavam e desejavam chorar de rir pela situação, e claro, que as libertamos logo após o rapaz nos agradecer com um belo sorriso e correr para seu canto reservado da recepção.
Àquela altura, tamanha nossa fome e sensação de: “o que está acontecendo aqui?”, fingimos não questionar as demais possibilidades de uso da pia, só tratamos de nos certificar de que tudo estava muito bem cozido.
E lá estava nossa deliciosa pasta, nossa garrafa de vinho que já estava pela metade, e as gargalhadas que não cessavam à cada lembrança.
E claro, como de costume, o bate papo sobre a diversidade cultural que nos encanta a cada lugar que visitamos e pessoas que partilhamos, que nos obrigam a saltar vez ou outra de nosso mundinho conhecido com parâmetros e paradigmas ultrapassados.
O Nosso jovem recepcionista, estava se preparando para a Salá, Salat ou Salah (em árabe), são as 05 orações públicas que cada muçulmano deve realizar diariamente, voltado para Meca. As orações devem ser feitas em momentos concretos do dia, que não correspondem as horas, mas as etapas do sol.
O ritual de purificação que o jovem fez na pia da cozinha, foi o wudu (ou wuzu) que consiste em lavar com água as mãos, as narinas, os braços até a altura do cotovelo, a face, a cabeça, as orelhas e ouvidos e os pés, de uma determinada maneira.
E sem percebermos, lá estávamos nós, participando do ritual e partilhando daquele momento único.
E olha, que pela nossa experiências com grupos, de diversidade cultural, social, ideológica, pensamentos, valores e crenças, em nossa arrogância, acreditávamos que nossos pré-conceitos eram poucos.
E o pré-conceito que mais foi testado naquele momento, foi nosso conceito de higiene e espaço para tal. Enquanto para outra cultura, água purifica tudo.
Diferente não? Sim, essa é umas das palavras que sempre usei em minha Vida: Diferente, pois quando uso parâmetros pobres como: pior ou melhor, bom ou ruim, certo ou errado, são conceitos que limitam meu Modelo de Mundo e me impedem de conhecer e entrar verdadeiramente em contato com o outro, dificulta a minha capacidade em desenvolver RESPEITO e compreensão ao que não faz parte da minha cultura.
Já disse Freud,
“Quando não somos capazes de entender alguma coisa, procuramos desvaloriza-las com críticas. Um meio ideal de facilitar nossa tarefa.”
E quando você está no encontro com o “Outro” você experimentará de tudo, menos facilidades, pois é justamente a partir da convivência com esse “Outro”, que você evolui.
Quando encontramos à diversidade mundial, mergulhamos numa seguinte compreensão sistêmica que usarei uma frase de Gandhi para tentar expressa-la:
Interdependência: ” Cada um de nós tem um corpo, mas temos uma só alma. Os raios de sol são múltiplos, mas provém da mesma fonte. Eu não posso separar-me de ninguém, mau ou bom.”
E isso é simplesmente Lindo!
O valor dessas experiências está na capacidade de abrir-se para compreensão, ampliar a mente, claro que muitas vezes também respeitando e protegendo nosso modo cultural de vivenciar o Mundo, e nessa troca, ambos saímos transformados.
Precisamos ter cuidado ao pisar no território do outro e assim aprendemos a só permitir a entrada em nosso Mundo, dos que respeitam nosso modo de ser.
Bem, e quanto à Montmartre…
Desde àquela cafeteria pequenina e acolhedora, com aquele cappuccino cremoso e desenhado pelo cacau, um croissant levíssimo e macio servido pela senhorinha de sorriso acolhedor, a cafeteria estilo década de 70, com poltronas cheias de pelos de gato e o garçom mais atencioso e fã do Ronaldo, ao café des 02 Moulins (Amélie Poulain que tenho um post à parte), Montmartre, realmente tem uma gastronomia inusitada, para Alma.
E essa foi apenas a nossa primeira ceia do primeiro dia,
Servidos?
Por Gizele Cordeiro
Uma alma de mergulhos incansáveis com o Outro.
1 comentário em “Santa Ceia em Montmartre – Paris”
Republicou isso em Julio Bernabé.